quinta-feira, 9 de abril de 2009

nº 31 Um artigo do jornal madrileno la Estampa. 1935

Os materiais etnográficos fruto do trabalho de campo realizados na Ilha de Arousa são escassíssimos. Como exemplo, nos cancioneiros históricos, (Inzenga, Casto Sampedro, Bal y Gay e Torner, etc.) não existe nenhum item, e só no de Dorothe Schubarth há uma única cantiga. Felizmente, possuímos um registro sonoro feito na Arousa nos anos 60 por um grupo de etnomusicólogos italianos, do que já darei conta noutra postagem.
É por isto que qualquer achega que podamos fazer a este respeito resulta do máximo interesse, para uma posta em comum e uma visão mais globalizada da nossa antropologia cultural.

Um campo urgente de redescobrir é o da prensa escrita, as crónicas daqueles jornalistas que vieram visitar-nos em diferentes momentos e que deitaram nos seus artigos as suas impressões.
Entre os conceitos fundamentais dos que falam os teóricos da investigação etnográfica estaria o do estranhamento. Este estranhamento é o que lhe vai permitir ao investigador manter uma distância com o informante, uma objectividade científica necessária. Com efeito, estamos a falar duma viaje antropológica ideal ao campo de trabalho que quase nunca se dá nestes termos, mas sim considero importante observar ao observador, analisar como os demais nos olham, olhar-nos a nos mesmo e de um trabalho elementar de comparação, concluir como somos na realidade.
Muitos dos artigos que formam parte da etiqueta Hemeroteca dos Ilheus, foram escritos por viajantes estranhados, no sentido etnográfico e psicológico, os quais elaboraram uma descrição densa do que na Arousa foi saindo ao seu encontro. Por tanto trata-se de observar, interpretar e transcrever.

O 09/03/1935 publicou-se o artigo En la isla de Arosa, La Estampa, Madrid, obra dos jornalistas Lorenzo Carriba e do fotógrafo Montaña [ver PDF]. Os autores dão uma visão que vai ser uma constante ao longo do tempo e que podem ser considerados como tópicos etnográfico sobre a vida e comportamentos dos ilhéus:
  1. O vitimismo. Os entrevistados sempre se doem do isolamento, não apenas geográfico que sofre a Arousa, senão principalmente administrativo.
    «Ni tenemos Ayuntamiento, ni hospital, ni farmacia, ni guardias, ni cura. Sin embargo, pagamos cerca de trece mil pesetas de impuestos.»

  2. Como defesa a este isolamento administrativo, os nativos destacam a autogestão em termos de trabalho comunal, assistência social ou mesmo o mantimento da ordem ante a falha de autoridade.
    «Sobre su superficie no verá usted ni un automóvil ni un pollino; por todas partes, pescado, fábricas de pescado, talleres para la construcción y reparación de embarcaciones y redes; pinos, dos peñas grandes, casas y mar. Dentro de este marco, la pobación se mueve como si se tratara de una sola y gran familia.»

  3. Ausência de conflitos.
    «Yo acabo de cumplir veinticinco años y, desde que tengo uso de razón, no recuerdo que aquí se haya cometido un solo robo o crimen. Si usted habla con un vecino de más edad le dirá a usted lo mismo. No obstante, las casas y las tiendas están siempre abiertas hasta horas avanzadas de al noche, sin un policía que vigile.»
Os relatos dos forasteiros, como este do que agora falamos, apresentam uma visão arcádica da Arousa, próxima a descrever-nos a um bom selvagem morador duma espécie de comuna hippie. No entanto, a insistente recorrência a estes tópicos indica-nos que algo ou quiçá muito haja de verdade em quanto se diz. O tradicional epíteto de singular ou esquisito referido aos ilhéus pode ser visto em chave antropológica, quiçá mesmo desde uma antropologia do si, e dizer, o constructo elaborado pelos próprios nativos para de forma simples, definir-se como povo diferenciado.

Do artigo de La Estampa, eu destacaria duas coisas: as magníficas fotografias de Montaña e a caracterização da personagem do Carregán a través das perguntas-respostas da entrevista.
A fotografia titulada Una pequeña arosana, é mesmo uma metáfora da imagem idealizada da Arousa. A menina inocente presenta-se ante o público que a vê pobremente vestida. O seu fato enrugado e surrado está cingido ao corpo com uma fita comprida que dá voltas a cintura até rematar num nó desordenado. A pesares da pobreza, olha para nós feliz e orgulhosa de morar na sua pequena Utopia. A estética quase ária de esta fotografia, devia aproximar-se muito ao que os leitores madrilenos esperavam dos habitantes dum lugar tão extravagante da Galiza celta.
A entrevista ao velho marinheiro não tem desperdício. Como se dum petrúcio irlandês se tratara o Carregán (O'Cárregan), achega ao relato toda a sua experiência de lobo de mar, de grande xamã ao que acodem os inexperientes jovens na procura de conselho. Lembra-me aquela istinção de Margareth Mead entre educação pós-figurativa, co-figurativa e pré-figurativa.
A cultura pós-figurativa designa o tipo de sociedade e de cultura em que as crianças aprendem dos mais idosos, isto é, dos que pertencem a pelo menos duas gerações anteriores.

Este tipo de educação foi a típica das sociedades humanas durante milénios, acrescenta a antropóloga norte-americana. Mas para se dares é imprescindível que os câmbios sejam muito lentos, de tal jeito que o modo de vida dum bebe não seja muito diferente da dum ancião. Obviamente, o Carregán e os seus sucessores estão no limite duma transformação que definitivamente vai fazer menos audível a voz dos maiores.

Um dos aspectos dos que se fala na entrevista é a grande explosão demográfica da que o velho marinheiro foi testemunha. Tendo em conta que está a piques de cumprir os oitenta anos deveu nascer cerca de 1855. Nas suas oito décadas de vida, a Arousa passou de ter uns mil habitantes a quatro mil. Este impulso demográfico não se deu por colonização migratória, assim que só se pode explicar pelas melhoras na alimentação e no controlo das enfermidades. Nestes dois factores deveu ser muito importante o estabelecimento das fábricas de conservas que proletarizou as mulheres, pouco úteis mal alimentadas ou enfermas.
Seguindo com a caracterização do Carregán como a do sábio xamã, dá-se-nos uma interpretação arousã da vida em harmonia do homem primitivo com a natureza. A toninha, (o de toulinha é um erro do jornalista ou um localismo?) não pode ser vista como inimiga, senão como competidora. O uso de explosivos é uma deslealdade da que nada sabem os funcionários nos seus gabinetes. O facto de que um comandante da marinha tenha de encartar a orelha e dar-lhe publicamente a razão amostra às claras quem está em posse da autoritas.
Mas são tempos de trocas, chega a luz eléctrica e o cinema. No Capitol põem El desfile del Amor (The Love Parade) de Lubitsch, com Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald. Tendo em conta que esta película estreou-se em 1929, a Ilha só chegou com seis anos de atraso.
Como colofão, na derradeira página da revista, não como feche do artigo, o velho marinheiro sai retratado junto ao jornalista, sentados e conversando nos degraus dum patamar. O Carregán semelha uniformizado para a ocasião. Aparece em todo o seu esplendor a elegância do marujo com o seu colete, o seu boné e as calças cheias de remendos. O investigador aponta no caderno de campo as respostas, também aqueles castrapismos que incrustará no seu artigo como sinal de autenticidade.



Coda:

Para os ilhéus que leais esta postagem proponho-vos uma tarefa. Quem são as pessoas que posam nas fotografias? Quem é a rapariga que olha a câmara e que quiçá ainda viva? Quem é o raparigo que salta o muro? Quem é...?

Sem comentários: