quarta-feira, 9 de agosto de 2017

nº 211 A fraternidade 888.


888


In Memoriam da 
A. C. Arcos de Maçarelos,
funambulistas das artes.

Conheci a Eduardo uma manhã de abril do 1983. O departamento de música da faculdade de Arte pedira-me dar uma aula magistral sobre folclore e cancioneiros. Apenas iniciada a palestra -a cuja redação dedicara inúmeras horas das últimas semanas– soou um despertador. O são do percussor a bater no sino metálico resultava anacrónico mesmo para aquela década dos oitenta. Um raparigo vestido de chapéu e capote pousou a mão sobre o relógio e de imediato saiu da sala caminhando pausadamente ante os sorrisos desconcertados do auditório.
Assim era o Eduardo. Meses mais tarde, quando já éramos íntimos amigos, pedi-lhe uma explicação ao incidente do despertador. A sua resposta foi um brevíssimo: 

Tinha coisas que fazer.

O caso é que a minha amizade com Eduardo durou apenas uns meses, intensos, com certeza, cheios de surrealismo e perigos reais para a minha pessoa.

O episódio que quero relatar hoje tem a ver com uma loja, uma irmandade ou algo semelhante, chamada a Fraternidade 888. Sei que o seu nome pode soar a maçonaria, mas não era exatamente isso, ou sim, ou que sei eu. O certo é que o 8 de agosto de 1983 fui o primeiro profano em cem anos –e derradeiro– que assistiu a um capítulo da Fraternidade.

E ali estava eu, sentado num cadeirão do Salão Amarelo do Casino de Homens. Ao redor duma mesa circular, oito fulanos, melhor, oito tipinhos, com os seus chapéus, os seus bigodes quase de adolescentes, o seu tabaco de enrolar, na altura absolutamente démodé. E eu entre eles, desportivo, com chinelos e calças curtas, bizarro de puro contemporâneo.
Então, porque é que fui eleito para fazer parte de aquela última reunião capitular da Fraternidade 888?
Oi, Mário, preciso que a próxima segunda-feira venhas comigo a uma reunião de amigos, espetou-me o Eduardo sem mais explicação.
Conhecendo o tipo de reuniões às que ia meu amigo, estava certo que não me ia aborrecer.

O capítulo durou apenas uns minutos. Os moços, todos da minha mesma idade, sentaram sem dizer palavra. O Eduardo deu os bons dias e, a continuação, cantaram o seu hino, uma peça titulada Adeus a Santiago. Esta valsa fora composta fazia exatamente cem anos pelo barítono valenciano Várvaro que chegou à cidade com o elenco duma companhia italiana de ópera. Para o empresário, também levantino, semelhante apelido resultava pouco comercial –e mesmo pouco italiano– razão suficiente para aparecer nos cartazes como Pietro Fárvaro. A letra levava a assinatura dum moço aprendiz de farmacêutico, Lisandro Barreiro, um dos padres fundadores da Fraternidade.

Partitura de Adiós a Santiago.
Fondo Local de Música
do Concello de Rianxo.

Logo de cantar o hino, os oito tiraram das correntes e colocaram sobre a mesa oito esplêndidos relógios, todos exatamente iguais: caixa de prata, três oitos gravados sobre a tampa e o que resulta mais excêntrico, as suas esferas só marcavam um ciclo de oito horas.
Aquele era o princípio fundamental da Fraternidade, o reparto alíquota do dia em terços de oito horas: um fragmento dedicado ao trabalho, outro para o estudo e o restante para o descanso. Uma divisão beneditina do tempo que era levada até as últimas consequências. Os irmãos, por exemplo, comiam três vezes ao dia: às 8, às 16 e às 24, o início de cada um dos três intervalos diários. No resto das horas, só a bebida e o tabaco estavam permitidos.
Tão logo como foram depositados os relógios sobre a mesa, Eduardo tirou duma saqueta um martelo protocolar de bronze e, um a um, escachou todas as maravilhosas esferas deixando inservíveis os aparelhos. Com uma pequena pá e uma vassourinha recolheu cuidadosamente os anacos e os meteu noutra bolsa que atou com múltiplos nós.

Assim acabou a reunião, com o meu coração a bater depois de ver como o meu amigo inutilizava os preciosos mecanismos construídos, como cheguei a saber, por um relojoeiro alquimista de Mondonhedo.
Durante os cem anos que durou a Fraternidade, por ali passaram vultos como os periodistas Labarta Posse ou o próprio Lisardo Barreiro –pais fundadores– Castelao, Pérez Lugín, Filgueira, Cunqueiro e tantos outros. Oito homens, sempre homens, que renovavam o capítulo cada quatro anos. Todos eles tinham algo em comum: o seu amor pela Tradição galeguista e o desprezo pelos seus estudos universitários, considerados um médio, mas que um fim em si mesmo. Segundo me contou o Eduardo, houve vários membros da Fraternidade que atraiçoaram os princípios fundamentais, mas foram os menos.
Em definitiva, o meu amigo, Grande Mestre da Fraternidade 888, queria que eu fosse o notário ou cronista do seu óbito, da morte duma loja inútil, absurda e elitista. Ou quem sabe….


Anotação no meu dietário de 1983.

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