segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

nº 212 Mezuzah


A gente conhece a minha afeição a observar o que me rodeia com olhos curiosos, reparando em detalhes absolutamente insignificantes que passam desapercebidos do pessoal, quiçá pelo simples facto de sempre estar ai. Assim, fui encontrando marcas, letras, símbolos gravados nos muros de templos, vivendas, valos, etc. Um repertório iconográfico que não para de crescer. 
Às vezes, algo faz que a minha cabeça, sempre fatigada, lembre uma imagem e a associe com uma citação, uma informação lida nalguma parte não sempre evocada imediatamente. A questão é que trás a visita que alguns rianxeiros fizemos ao Castelo da Lua –fortaleça rianxeira na desembocadura do rio Te– convidados por Tito –o concelheiro de património– e guiados por Mario –o arqueólogo diretor das excavações–, volvi a repassar as minhas velhas postagens agrupadas baixo a etiqueta Graffiteiros do Passado. Entre todas elas há uma belíssima, quiçá a mais monumental das que ocupam uma jamba da porta duma vivenda particular, localizada no lugar de A Igreja, Leiro. 

©Orjais

Para entender esta imagem recomendo a leitura dum artigo do Anuario Brigantino titulado Viviendas de judíos y conversos en Galicia y el Norte de Portugal. O seu autor é o arquiteto Emilio Fonseca Moretón e pode ler-se na rede [aqui]. Fonseca Moretón fala-nos das cruzes de conversos, tal e como ele as denomina, uns símbolos que os judeus conversos colocariam justo debaixo de onde estivera colocada a mezuzah. Em realidade, o oco que contém este pergaminho da tradição hebraica seria o que diferenciaria uma casa judia duma cristã:

«El modo de vida judío era en todo parecido al de los cristianos salvo en lo relativo a las prescripciones alimenticias, los usos religiosos, las fiestas, y el día de descanso semanal. No existen por tanto condiciones morfológicas singulares que diferencien la vivienda de un judío de la de un cristiano. Lo que caracterizaba y singularizaba externamente la vivienda de un judío era la mezuzá: una pequeña caja que guarda un rollo o pergamino en el que están escritos unos determinados versículos del Deuteronomio y que debe ser colocada, aproximadamente a la altura del hombro de una persona adulta, en el plano interior de la jamba, con preferencia la del lado derecho, de la puerta de entrada a la vivienda.» Vivendas de judíos y conversos en Galicia y el Norte de Portugal. Emilio Fonseca Moretón. O negrito é meu.

Fonseca Moretón fala neste artigo de algumas outras características das casas de conversos como os arcos em cortina manuelinos, tão abundantes em Rianxo, com dois exemplos magníficos na Rua de Arriba.
Mas voltando à jamba de Leiro vemos como guarda similitude com algum dos exemplos expostos pelo arquiteto Fonseca Moretón. Temos duas cruzes, uma delas monumental, e sobre elas, à altura do ombreiro, um rebaixe que bem podia ser a localização do mezuzah. Normalmente o lugar onde se encaixa o pergaminho kosher é apenas uma tira de aproximadamente 20 cm, pouco mais que a caixa que contem uma caneta-tinteiro. Mas o oco vazio seria um sinal muito evidente de que a casa foi ocupada por judeus, assim que resulta crível que optaram por fazé-lo desaparecer com um rebaixe excessivo para o tamanho da mezuzah. E a cruz monumental? Pois também no artigo que vimos comentando há exemplos similares no que se identifica o desenho desta cruz com um candelabro judaico de sete braços ou menorá. 

 ©Orjais

O feito de pôr cruzes nas jambas das vivendas ou dos moinhos explica-se normalmente por razões profiláticas, como precaução ante os maus espíritos e para livrar a vivenda do mal de olho. Eu tenho visto a várias pessoas passar a mão por estas cruzes e persignar-se. Até não faz muito era frequente as pessoas na Galiza fazer-se cruzes ao sair da casa e mesmo se colocavam pequenos crucifixos de madeira ou porcelana nos pórticos, às vezes mesmo com pequenos depósitos para água benta. 
Com certeza pôde haver casas de conversos que destruíssem os habitáculos da mezuzah e colocaram cruzes nas jambas ou anagramas de Cristo nos linteis, mas, obviamente, não todas as cruzes nas jambas têm que ser necessariamente cruzes de conversos. 

Finalmente, e vendo a impressionante quantidade de cruzes que povoam os muros de Rianxo um tem a suspeita de que não é fruto da casualidade e que o fenómeno merece ser estudado a fundo. A câmara municipal da Guarda, na Beira Alta de Portugal, enviou-me faz uns anos um formoso livro e diverso merchandising sobre as marcas mágico-religiosas da sua vila, em todo similares às de Rianxo, seguindo-se nesta publicação a tese judia. Eu não sei qual é a razão de que existam estas cruzes no nosso concelho nem vou defender a sua origem nos cristãos novos, o que sim sei é que cada vez que penso na relação entre a cultura judaica e Rianxo sempre me vem a cabeça o complexo rupestre da Foxa Velha nas abas do Pilotinho, a pouca distância da Igreja de Leiro. Sobre a grande laje da Foxa Velha e quiçá com um intervalo de alguns milhares de anos, habitantes do que hoje é Rianxo foram deixando a sua pegada em forma de espirais, labirintos, covinhas ou cruzes. E entre tanto desenho de difícil interpretação alguém sentiu a necessidade de gravar uma Estrela de David.

Estrela de David na Foxa Velha, Rianxo.

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